segunda-feira, 6 de abril de 2009

A MORTALHA (dueto)


Camila aos sete anos e meio de idade já sabia o que queria da vida, e ela havia decidido ser má.

No útero ela havia começado sua sina de problemas. A pré-eclampsia que quase vitimou sua mãe foi um sinal claro que aquela menina não seria flor que se cheirasse. Pouco tempo depois a depressiva progenitora pôs fim a sua vida. A pobre mulher cometera o suicídio. No bilhete escreveu à menina: “não te culpo nem te isento, o tempo revelará se teve mesmo culpa pelo meu fim”.

Os anos passaram e a pequena cresceu em beleza e maldade, a segunda de forma vultosa.

Matava pequenos animais, maltratava outras crianças, até maiores que ela. Assim que aprendeu a falar também aprimorou sua língua afiada com respostas malcriadas, insultos agressivos disfarçados pela inocência de criança, sendo que ela jamais tivera essa inocência.

Mais tarde abandonou o velho método. Preferia ardis aos insultos, trocou a ofensa exposta pela maldade dissimulada. Camila tornou-se cínica e perigosa. Quem não conhecia sua mente maquiavélica até sensibilizava-se com seu rosto doce e seu jeito pueril, mas aos sete anos e meio a garota tinha uma notável inteligência maligna.

Quando não conseguia algo pela força, ela rapidamente mudava de estratégia e manipulava a todos até que seus caprichos fossem satisfeitos.

Vagou por alguns lares depois que seu pai desistiu de criá-la. Não permanecia muito tempo em cada casa e as mesmas desculpas para despachá-la se repetiam a exaustão, o que só fazia seu rancor aumentar. Em sete anos de vida, cinco famílias já haviam a repudiado. Três tios paternos, uma vizinha que era sua madrinha e a ultima foi sua avó materna que morrera subitamente. Essa morte era um novo ponto de partida para a menina.

Depois da missa de sétimo dia, a cúpula da família decidiu mais uma vez o destino da pequena Camila. Ela no quarto permanecia na espera. Não desviava o seu olhar do espelho. Gostava de ver-se com aquele vestido preto que lembrava a mortalha negra que envolvia sua avó no caixão.

O reflexo pálido de vestido negro conversava com a menina, e ela em retribuição a imagem refletida, sorria, coisa rara naquele rostinho. Aquela imagem era sua única amiga e elas sabiam que as noticias não seriam boas. E não foram mesmo.

Aos dezoito anos Camila deixou a instituição que sua família a imputara. Depois de mais de uma década sem qualquer contato, ela sabia que estava sozinha no mundo. A instituição estava aliviada com o dever cumprido, finalmente a parenta do demônio ia embora.

A menina, agora uma mulher, saiu com uma mala um pouco maior do que a mesma que trouxera quando chegou ao abrigo. De sua infância carregava apenas lembranças amarguradas. Voltou à antiga casa onde vivera os últimos anos com sua avó. Por sorte, apesar de abandonada, tudo estava lá, como ela havia deixado. No esconderijo de criança as valiosas jóias da família que havia furtado de sua avó pouco antes de ser desterrada.

Camila tinha um tino excepcional para negócios, vendeu um colar e alugou um apartamento por temporada. Vendeu um camafeu, um berloque e mobiliou os dois quartos, a cozinha e a sala de estar. A grossa pulseira de ouro foi suficiente para vestir-lhe com as mais belas roupas que encontrou. Sua escalada tinha começado.

Naquela noite ela vestiu um insinuante vestido preto. Cobriu-se com as muitas jóias da família que ainda lhes restavam e pôs-se em frente ao magnífico espelho de prata que comprara num antiquário. Sentiu-se pura e em sintonia com o macabro da cena, novamente aquele vestido lembrou-lhe a mortalha de sua avó. A menina do espelho riu e então conversaram como a muito não faziam. O demônio havia despertado novamente.

- Nos culparam a vida toda por uma maldade que nós sabemos que todos carregam. Nós nascemos maus e dissimulamos o contrário para participar do jogo, não é mesmo? Se nos permitíssemos um pouco de cinismo estaríamos agora comendo peru de natal e abrindo presentinhos detestáveis. Que coisa patética, não é? A maldade é a pureza das crianças e o instinto humano é destruir. Não há recompensa por toda essa bondade barata. Lutamos ou morremos, essa é nossa natureza.

Serviu-se de champanhe e brindaram juntas. Teriam muito trabalho dali pra frente. A família era grande e não seria fácil encontra-los, um a um.



O QUE É O DUETO?

O formato segue o mesmo. Começo um conto e levo ele até um ponto X. Convido um amigo que fica responsável pelo Y da história. Esse convidado especial é pego no pulo, não sabe nada, não tem nenhuma referência. Parece fácil? Acreditem, eu estou ficando cada vez mais maquiavélico e as histórias são cada vez mais difíceis de completar!

Luis Fernando é o intelectual da vez. Esse eu sei que escreve muito bem, geralmente coisas da alma, e vale a pena. Garanto que foi quase um parto esse nosso conto. Mas já adianto que em breve vou publicar um outro conto, mas esse nasceu ao inverso. Provei do meu próprio veneno.

p.s. link dos duetos anteriores: O EXTRATO, A REFORMA , A ESTAÇÃO

Um comentário:

Anônimo disse...

Mórbido demais, mas muito bem escrito.
Bjs

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