domingo, 1 de março de 2009

O EXTRATO (dueto)

Ainda tremulo passou novamente o cartão na máquina, mal conseguia concentrar-se na senha de números e dígitos. Errou alguma coisa. Estava nervoso.

A agência estava vazia, ainda era muito cedo. No auto-atendimento só ele e a máquina operavam. O silêncio, o ambiente refrigerado e o sibilo do terminal deixavam o homem ainda mais estressado com aquela situação singular.

Respirou fundo e inseriu o cartão novamente, tomou o máximo de cuidado na hora de digitar os números e em seguida a sequência de letras que seu banco exigia para aumentar a segurança naquelas transações. Dessa vez conseguiu acessar sua conta sem problemas, lembrou que nunca antes tinha errado a senha.

Alguns segundos depois o papelzinho com seu extrato deixava a máquina e pousava em sua mão ansiosa por aquele resultado, como se fosse a resposta de um exame derradeiro de saúde. Segurou o papel e novamente puxou um longo suspiro antes de verificar o que nele havia impresso.

Seu medo se confirmou, estava ali, novamente, aquele valor claro e expressivo.

Alguém entrou na agência e foi para outro terminal de auto-atendimento. Ele sentiu-se ameaçado e amedrontado, como se a pessoa soubesse o que estava se passando com ele.

O excesso de zeros naquele extrato dessa vez estavam a direita. Como num passe de mágica havia em sua conta muito mais dinheiro que ele conseguira juntar em toda sua vida. E o valor já estava consolidado e desbloqueado ali há alguns dias. Depositado sem estorno algum. Completamente a disposição desde as 19h30min da última terça-feira.

Se fosse um erro do banco o valor certamente já teria sido retirado de sua conta, ou estaria indisponível. Mas há quatro dias o valor permanecia intocado. Quatro dias que aquele homem repetia a mesma rotina de extratos e vigília permanente. E nada acontecia.

Ninguém mais, além dele, sabia do ocorrido, nem amigos, nem família, nem colegas de trabalho. Ele guardou esse segredo até de sua própria sombra. Com aquela quantia poderia viver sem qualquer dificuldade o resto da vida desfrutando infinitamente da sorte que finalmente o encontrara.

No dia anterior chegou a abrir uma conta em outro banco para transferir logo o dinheiro. Depois mudou de idéia, agendou com o gerente a retirada em espécie do valor, mas voltou atrás novamente. Ele não sabia o que fazer, e não confiava em ninguém para partilhar aquele fato tentador.

Rasgou o extrato em dezenas de pedaçinhos e secou a gota de suor que escorria por uma de suas têmporas. Antes de jogar tudo no lixo ele se arrependeu do gesto e voltou à máquina para solicitar novo extrato. Precisava da prova material que não estava alucinando. Novamente o terminal emitiu a mesma sentença àquele homem.

A boca seca, o olhar desconfiado e assustado, as mãos tremulas e úmidas, o coração arrítmico, a cabeça fervendo. Ele teria que resolver logo o que fazer antes que aqueles números acabassem de vez com sua saúde física e mental.

Sem pensar duas vezes ele dobrou o papel e escondeu-o dentro de sua carteira, havia muito o que pensar e decidir com toda aquela confusão mental que estava enfrentando.

Saindo do banco avistou um carro de polícia e todo seu corpo sentiu um arrepio intenso e agressivo, pensou: - será um teste? Uma prova de honestidade que estou passando? - Não, não poderia ser, pensou até em sonho, - isso não é real! – mas logo convenceu-se da realidade após tropeçar em uma pedra solta na calçada que quase o levou ao chão. - Preciso me acalmar... – sentenciou em sua mente aturdida.

No meio do turbilhão de pensamentos lembrou de tudo que passou em sua infância, de seus amigos verdadeiros, de sua família amorosa e humilde. Eram essas pessoas que ele iria considerar em um momento assim, quem sempre fez a diferença em sua vida. Aquele dinheiro ia ajudar muito a todos que amava, por eles ele seria capaz de ficar com o dinheiro.

Noutro instante o vil metal turvou-lhe a mente. A sombra do egoísmo possuiu sua alma. Não contaria nada a ninguém. Pensou em viajar, em trocar todas suas roupas, em modificar seu visual, em viver de forma mais leve, tranquila. Mas como faria todas essas mudanças sem que ninguém percebesse o novo milionário que estaria visivelmente emergindo aos olhos de todos? Teria que mudar de plano.

Lembrou de um problema de saúde que muito lhe preocupava e que poderia acabar com seu sonho precipitadamente. Seu coração não era dos mais fortes, herança genética de pai e avô, os dois tiveram uma morte rápida. Agora não conseguia imaginar a morte. Queria viver para aproveitar a sorte grande que tivera.

Tão logo pudesse faria um testamento e um vultuoso seguro de vida, era egoísta, mas não ao ponto de morrer e deixar que todo aquele patrimônio verificado e confirmado várias vezes se esvaísse de forma tão estúpida e caísse novamente em mãos anônimas.

Dias depois a viagem estava marcada, o destino traçado. Saiu de casa só com a roupa do corpo para não despertar suspeitas. Deixou apenas uma carta explicando tudo, eles teriam que entender, em sua nova vida não poderia arrastar consigo o peso morto de sua família. Chegou ao aeroporto internacional agitado e com horas de antecedência. O guia explicava cada detalhe de sua viagem tão merecida, foram anos desejando sair do país.

Antes que entrasse na sala de embarque ele foi novamente a agência do banco que ficava dentro do aeroporto. Quis verificar pela última vez seu opulento extrato. Dessa vez estava confiante e empolgado com sua decisão. Logo estaria fora do Brasil e faria a transferência do dinheiro já para uma conta estrangeira.

O extrato demorou um pouco mais que o normal, mas logo saiu da máquina direto para mão despreocupada daquele homem de sorte.

Olhou superficialmente o extrato e já o dobrava para guarda-lo na carteira, mas havia algo diferente ali que sua visão periférica identificou. Abriu rapidamente o papelucho e analisou aqueles mesmo zeros que já conhecia tão bem.

Sentiu seus músculos se retesarem por todo seu corpo. O calor que lhe tomou quase que imediatamente não permitiu que mantivesse a lucidez necessária para avaliar aquele papel em suas mãos.
Deixou o extrato cair antes que pudesse conferi-lo novamente. Logo o homem também foi ao chão frio do piso da elegante agência do aeroporto. As pessoas assustadas com a cena custaram a aproximar-se do corpo que se retorcia no chão.

Ele manteve-se consciente, mas nenhum de seus músculos respondiam a seus comandos. A visão de um de seus olhos estava cada vez mais comprometida. Sentia muita dificuldade em respirar.
Os populares já haviam chamado os médicos, que se não chegassem logo seriam inúteis aquele homem.

Os minutos que seguiram pareceram a ele horas intermináveis de agonia e aflição. Ali naquele chão completamente incapaz de mover um dedo sequer ele tentava lembrar do que vira naquele último extrato. Por mais que se esforçasse não conseguia ter certeza de que lado aqueles zeros estavam alocados. Se estavam, como em toda sua vida, à esquerda, ou se estavam inadvertidamente, como naqueles dias de glória, todos do lado direito.

Ouviu a chegada dos para-médicos, diferente de todo o resto, ao menos sua audição permanecia indefectível.


O QUE É O DUETO?

Continuo minha senda escrevendo alguns contos com a luxuosa contribuição de amigos. Inadivertidamente começo meu texto e mando a um cúmplice para que prossiga a história sem qualquer informação extra. O sumo disso tudo é a mais pura criatividade e jogo de cintura da dupla.

O escolhido desta vez para dar novas cores a história foi meu amigo capilé Robson. O mais incrível disso tudo é que o campo de atuação desse amigo é por conta das 'exatas', agora se nós usamos bem o hemisfério oposto do cérebro só quem ler vai saber!



p.s. link dos duetos anteriores: A REFORMA , A ESTAÇÃO

Um comentário:

Dom Fernando II disse...

E qdo vao postar o final? rsrsrs
bah, covardia isso, ficou incompleto !!!

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