Já passava das duas horas da madrugada e a cidade parecia ter adormecido, ou pelo menos parte dela. A campainha estridente e impiedosa do telefone ecoou pelo quarto comprovando que nem toda metrópole repousava tranqüila, alguém estava acordado e ao telefone. Foi preciso mais de dois toques para que ele despertasse de um sono recentemente profundo.
Foi tateando até encontrar o abajur sobre o criado-mudo, e o acendeu impaciente. Sabia que ligações na madrugada geralmente não traziam boas notícias.
Desvencilhou-se do sono e atendeu ao telefone aliviado por interromper o ruído quase insano do aparelho.
– Alô! – Oscar deliberadamente não disfarçou a voz embargada e sonolenta. Resmungou mal-humorado confirmando que entendia o que falavam do outro lado da linha – Sim, ela está aqui do meu lado! – passou desgostoso o telefone a Milena e em seguida deixou a cama.
Oscar era noivo de Milena, quase marido, já que oficializariam o casamento em menos de duas semanas numa recepção faraônica. Cinco anos de namoro foi tempo o suficiente para terem certeza do compromisso que iam assumir, finalmente para ele e irresolutamente para ela.
Apesar da proximidade do casamento, as coisas não iam tão bem entre os noivos; Milena já havia desmarcado a cerimônia em uma outra ocasião e essa parecia ser a última chance de um final feliz no relacionamento. Tratava-se de um ultimato. Por Oscar já teriam casado há muito tempo, mas ela havia adiado a decisão o mais tempo que pode.
Milena Sampaio tinha uma vivacidade ímpar, com vinte e sete anos e uma inquietude adolescente aliada a uma responsabilidade madura. Era de uma alegria quase que febril, compartilhada somente com os amigos mais íntimos, por isso era considerada, pelos injeitados, um pouco esnobe. Seus cabelos castanhos muito finos e lisos contornavam seu rosto amável e inteligente de quem primeiro encanta, mas só depois se revela inteiramente.
Milena havia relegado o casamento anteriormente sob pretextos de mulher moderna: terminar a faculdade e conquistar estabilidade na profissão. Agora as desculpas haviam se esgotado. Ela já era uma jornalista formada e trabalhava numa das maiores revistas do país, a carreira quase meteórica não deixava dúvidas, era hora de decidir se outorgava o pedido de casamento, ou não.
Oscar foi tomar uma ducha enquanto ela sonolenta sentou-se na cama para responder com mais atenção ao telefonema. Murmúrios revelavam que entendia o que se passava.
A ligação não demorou muito, Milena compreendeu porque Oscar tinha ido desgostoso tomar banho. Da porta do banheiro em meio à nuvem de vapor analisou-o através do box de vidro. Ele era perfeito, um tipo raro de homem.
Oscar era um rapaz alto e atlético, mantinha o rosto sempre bem barbeado, possuía olhos verdes muito expressivos, ela era capaz de saber o que ele estava pensando só olhando em seus olhos. Faltava-lhe, talvez, um pouco de confiança, típico dos filhos de pais dominadores. Educado, gentil, inteligente, fiel, e rico muito rico. Oscar Martins de Alcântara era herdeiro de uma verdadeira fortuna.
Entretanto tanta perfeição e há tanto tempo, já tinha a entediado, mas ela o amava – como não amar alguém assim? – pensou entrando com ele no box.
***
Embora estivesse sempre funcionando, a redação da revista Vis-à-vis aquela madrugada fervia. Por algum motivo os computadores estavam quase todos em pane, não se comunicavam direito, os servidores sobrecarregados reiniciavam-se sistematicamente. Um verdadeiro bug.
A sede da revista ocupava quase todo um moderno e imponente prédio no centro da cidade. Milena sentia-se realizada cada vez que entrava naquele prédio, ele representava a realização do seu projeto de vida.
Muito estudo lhe garantiu a vaga em universidade pública, um pouco de sorte e talento lhe garantiram um estágio na Vis-à-vis. Assim que se formou foi efetivada, mas ainda esperava uma boa oportunidade na revista.
Oscar, muito a contragosto havia a deixado em frente ao prédio e ido dormir em casa, furioso como um menino mimado.
Aquela convocação extraordinária era para poucos: os melhores - por isso estranhou, não sabia que já estava no primeiro time da casa. Mesmo sendo uma reunião privada, estavam lá quase todos funcionários, para saberem ao menos o que estava acontecendo de tão atípico, ainda que ficassem do lado de fora da sala.
Totila Kochi, sua melhor amiga da época da faculdade e colunista social júnior da revista estava, como ela mesma havia descrito, abaladíssima com o evento incomum.
– Ai Lena! Essa reunião vai ser devastadora amiga, cuidado! Comentam por ai tanta coisa! Graças a Deus que não fui convocada! – ela acompanhou Milena até a sala de reuniões. – Você sabe porque não me convocaram? Me sinto rejeitada! A rejeição é devastadora na vida de uma mulher... Acredita que chamaram até aquele degenerado do Murilo, imagina, um estagiário foi convocado e eu não! – Totila podia ser sua melhor amiga, mas era um tanto prolixa, Milena deu um jeito de despistá-la e foi direto para máquina de café.
(continua...)
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